A grande interrogação proposta é se poderá haver uma presunção de que há qualquer coisa para ensinar, para transmitir, no que à arte diz respeito.

A decisão de, pelo menos, tentar manter as incoerências próprias de um diálogo deste género feito em conjunto é a única justificação para o título do espectáculo, mesmo que estas incoerências se percam depois de cada um dizer o que pensa.

São estes momentos de incoerência que são o centro da discussão. São opiniões directas atiradas à cara do investimento de sentido que cada um faz e que está permanentemente sujeito a mudanças, um processo que se opera através do colapso do investimento dos outros.

Entre concordância e discordâncias o que se tenta enfatizar, talvez apenas simbolicamente, é mesmo uma mudança. Uma mudança visível inserida dentro da certeza que é necessária para passar conhecimento artístico.

Ch-ch-changes, pretty soon now you’re gonna get a little older

David Bowie

5 de maio de 2010

Chamemos-lhes Luísa e Guida, Por Agora (segunda parte)


P - Nasceu com uma deficiência na mão direita e no braço direito e um certo voluntarismo dos seus pais reagiu, um voluntarismo efectivamente espantoso, que foi o de o terem forçado a escrever com a mão direita. Creio que lhe prendiam a mão esquerda atrás das costas para o obrigar a escrever com a mão direita. Hoje em dia, isso seria absolutamente incompreensível!

R - Pois bem, então é o que se passa hoje em dia que eu lamento! Se se compreender que uma pequena deficiência é, pelo contrário, um grande privilégio, quer dizer uma escola de esperança, uma escola da vontade. Cada progresso é objecto de registo. O facto de, para apertar os sapatos, ser necessário quase um ano de exercícios, quando havia fechos-éclair, diz bem aquilo de que estamos a falar. Ou seja, em vez de se dizer à criança: “Pobrezinho, vamos facilitar-te as coisas”, diz-se-lhe: “Tens muita sorte, vamos dificultar-tas.” Sem querer ser minimamente pretensioso, acredita, compreendi cedo, muito cedo, uma das máximas preferidas do meu pai (uma máxima de Espinosa) que diz que “a coisa excelente deve ser muito difícil”. Mas é verdade, sim. Não se trata de castigar - de maneira nenhuma. Hoje há uma terapia da facilidade. A luta pela resolução dos problemas de todos os dias; tive muita sorte em ter pais que o percebiam. Não havia nada de sádico nem de sinistro nisso, pelo contrário: quando chega o momento do sucesso, há um imenso riso de alegria.

P - Rilke diz algures, que as obras de arte são sempre o resultado de um risco incorrido, de uma experiência levada até ao fim. O que significa, no fundo, que em Rilke talvez haja essa ideia de que a partir duma cultura superficial - vou chocá-lo - há a possibilidade de construir uma verdadeira cultura. O que é que nos permite dizer que, a partir de um trecho de rap, não haverá a possibilidade de uma complexificação crescente, de integrar pouco a pouco nesse modo de expressão elementos cada vez mais elaborados?

R - Oxalá você tivesse razão! O meu instinto diz-me que uma equação não-linear, uma fuga de Bach, uma passagem de Platão, de Descartes ou de Kant, um quadro de Giorgione, nunca serão um produto de massa. Talvez tenhas razão, mas o teu exemplo de rap, se me é permitido falar com toda a franqueza, é infeliz! Porque o rap associa-se, precisamente hoje, ao que há de mais assassino nas nossas civilizações urbanas. O rap (como o Heavy Metal) é a própria voz da violência, da brutalização do indivíduo.

P - Que parte do ser humano é cultura superficial e que outra parte é suficientemente profunda para resistir?

R - Há um belo termo, que vem do latim, de praepotens: tentar impor o seu conhecimento. A cultura é qualquer coisa de extremamente elitista. “A verdade pertence a muito poucos.” Verifica-se que, neste planeta, noventa por cento dos seres humanos preferem (e estão no seu pleno direito) a televisão mais idiota, a lotaria, a Volta a França, o futebol, o bingo a Ésquilo e a Platão. Durante toda a vida esperamos estar enganados e mudar esta percentagem por meio do ensino, da disseminação dos museus - as casas da cultura, mas não! Mas não! Aprender uma língua, aprender a resolver uma função elíptica, não é nada divertido. São coisas que só se aprendem com o suor da alma. A maior parte das pessoas dizem: “Mas porquê? O que é que isso me adianta?”

P - Isso quer dizer que você pensa que Diderot, que dizia que era necessário apressarmo-nos a tornar a filosofia popular, ou Brecht, que dizia que era necessário alargar o círculo dos conhecedores, se enganaram redondamente? Que as suas afirmações são votos piedosos, voluntaristas? Enganaram-se?

R - Muito redondamente. As palavras fast food invadiram tudo, os McDonald´s e os Kentucky Fried Chicken do espírito humano levam a melhor por um milhão contra um sobre a cultura. Com que direito? É aqui que a questão se torna realmente difícil e política.

P - Podes ensinar a Arte?

R - Com que direito podemos tentar forçar um ser humano a assumir um nível mais elevado nas suas alegrias e nos seus gostos? Quanto a mim, creio que ser professor é apossar-se desse direito. Não se pode ser professor sem se ser interiormente um déspota, sem se dizer: “Vou-te fazer gostar de um texto belo, de uma música bela, de altas matemáticas, de História, de filosofia.” Mas, atenção, a ética desta esperança é muito ambígua.
Conhecemos tantos grandes artistas, totalmente abjectos na sua vida pessoal!

P - Quais são os perigos da inércia? Vês muito disso no mundo da Arte e no mundo académico?

R - O animal humano é muito preguiçoso, provavelmente muito primitivo nos seus gostos, ao passo que a cultura é exigente, é cruel, por força do trabalho que reclama.

P - Estás cansado do rótulo de Enfant Terrible?

R - Há a expressão americana muito simples “bottom line”: o traço final, aquilo que não se pode ultrapassar.
Mas devemos ter a coragem de nos matarmos, sejam quais forem as circunstâncias.

P - O ensino e a práctica, na tua opinião, são actividades distintas?

R - ....

Sem comentários: